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A sociedade pós-coronavírus

Se você é do tipo que está ansioso pelo fim da quarentena para retomar sua vida exatamente do ponto que ela parou, sinto em lhe informar: você está iludido

Se você é do tipo que está ansioso pelo fim da quarentena para retomar sua vida exatamente do ponto que ela parou, sinto em lhe informar: você está iludido. Mesmo que esse período acabe o mais rápido possível, não haverá volta ao normal. Nada será como antes. Teremos que construir um novo normal, uma nova sociedade. Nesse exato momento, estamos vivendo uma mistura do que não é mais com o que não existe ainda. Uma fase marcada por transição e incertezas.

Em 1999, quando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido em 2017, lançou o livro Modernidade Líquida, não se podia imaginar um vírus capaz de paralisar nações. Ainda assim, naquela época, ele já havia notado que o século XXI não seria mais como o século XX. Segundo ele, antes, os valores se transformavam em ritmo lento e previsível. Tínhamos algumas certezas e a sensação de controle sobre o mundo – sobre a natureza, a tecnologia, a economia. Mas, acontecimentos da segunda metade do século XX, como a instabilidade econômica mundial, o surgimento de novas tecnologias e a globalização, criaram um mundo líquido, no qual as coisas são tão rápidas e efêmeras que não há tempo suficiente para se solidificar.

Nessa passagem do mundo sólido para o líquido, Bauman chama atenção para a liquefação das formas sociais: o trabalho, a família, o engajamento político, o amor, a amizade e, por fim, a própria identidade. Essa situação produz angústia, ansiedade constante e o medo líquido: temor do desemprego, da violência, de ficar para trás, e principalmente de não se encaixar mais nesse novo mundo que muda num ritmo cada vez mais veloz. A pandemia do novo coronoavírus só intensificou e deve continuar intensificando esse processo de liquidez.

O isolamento social imposto pelo governo aos cidadãos – até então livres – desperta uma série de reflexões. Se antes, boa parte do nosso tempo era gasto indo e voltando do trabalho, hoje estamos dentro de casa, com um tempo extra que simplesmente muitos desconheciam. Se a semana era dividida entre cinco dias de trabalho e dois de lazer, hoje há e-mails importantes chegando aos domingos à noite. Ou seja, os padrões industriais que nos foram ensinados começam a perder sentido. Estamos sendo obrigados a conviver mais com a família do que com os colegas de trabalho ou faculdade. Somos obrigados a cozinhar em casa, em vez de irmos a restaurantes. Somos estimulados a buscar alternativas de entretenimento e atividade física sem sair das nossas salas.

Por mais que, nesse momento, a maioria sinta que assim que o isolamento for suspenso voltaremos para as ruas a fim de tirar o atraso, pode ser que não seja bem assim. Pelo menos, não para todo mundo. E, pode até ser que isso aconteça, mas por um curto período de tempo. A maioria irá analisar sobre a real necessidade de atravessar cidades diariamente sendo que é possível entregar a mesma – ou até mais – qualidade e produtividade no trabalho estando dentro de sua própria casa.

Embora pareça uma reflexão nova, em 1980, Alvin Toffler, um dos maiores futuristas que o mundo já viu, falecido em 2016, apresentou o conceito de “cabanas eletrônicas” em seu livro A Terceira Onda. Nele, Toffler defende que colaboradores de “colarinho branco”, que não precisam colocar “a mão na massa” nas indústrias, não precisam se locomover diariamente para os grandes centros. Ele calcula – com as tecnologias disponíveis naquela época – a vantagem do investimento em telecomunicação em detrimento do gasto com transporte. Ressalta ainda os benefícios na redução do trânsito, acidentes, infraestrutura e principalmente no meio ambiente.

No fundo, não há nenhuma novidade nisso. Na era agrícola, chamada por Toffler de primeira onda, as famílias moravam e trabalhavam todas juntas, cultivando alimentos para consumo próprio nas suas pequenas propriedades. Com o advento da revolução industrial, que ele chama de segunda onda, as famílias que antes eram compostas por avós, tios e outros agregados passam a ser compostas apenas por pais e filhos, que dividem pequenos espaços em grandes centros, onde eram localizadas as fábricas. Na era digital, ou terceira onda, a tecnologia permite que nossas casas sejam muito mais bem equipadas que as próprias fábricas do início do século XX, que muitas vezes não tinham nem energia elétrica.

Outro conceito amplamente difundido no livro é o de prossumidor. Segundo o futurista, as pessoas da era digital buscam a constante desmassificação, querendo ser únicas, autênticas. Para isso, preferem elas mesmas construírem seus próprios produtos. Em vezes de serem meros consumidores passivos do que as grandes fábricas produzem, elas fundem o conceito de produtor com o de consumidor, tornando-se prossumidores. Elas adotam o estilo “faça você mesmo” e conquistam a customização até então inimaginável. Com a popularização do YouTube, em que é possível aprender a fazer praticamente qualquer coisa, esse comportamento tem se acentuado cada vez mais.

O que Tofller e Bauman não tiverem tempo de abordar em suas obras é o impacto que tecnologias como Blockchain e impressoras 3D podem representar à chamada sociedade 5.0. Esse conceito, cunhado pelo governo japonês em 2016, no lançamento do 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia, aponta para o desenvolvimento de soluções tecnológicas cujo foco é o bem-estar do ser humano, a qualidade de vida e a resolução de problemas sociais. Trata-se de um modelo de organização social, em que tecnologias como Big Data, Inteligências Artificial e Internet das Coisas são usadas para criar melhorias para a vida em sociedade.

O que a pandemia de coronavírus está fazendo, a meu ver, é acelerar esse processo de transformação digital e de curva de adoção de tecnologias exponenciais para o bem comum. No caso do Blockchain, por exemplo, estamos falando da possibilidade de uma sociedade auto-gerenciável, sem a necessidade de governos ou órgãos reguladores. Uma sociedade totalmente desmassificada e distribuída, em vez de aglomerada em centros urbanos. Honestamente, não sei se estamos socialmente preparados para tamanha mudança, mas a situação favorece reflexões desse tipo.

No caso das impressoras 3D, a realidade parece muito mais próxima. Se as pessoas querem produzir elas mesmas, a impressão 3D e 4D faz com que qualquer um se torne uma mini fábrica. O impacto na estratégia e logística de mercado como conhecemos hoje é total. Indústrias deixarão de fazer produtos manufaturados para nos entregar pequenas quantidades de matéria-prima para que nós mesmos, dentro de nossas cabanas eletrônicas hiperconectadas, possamos criar objetos únicos, exclusivos e que atendam perfeitamente às nossas expectativas e não às necessidades das massas.

Em suma, ainda é cedo para saber os reais impactos da pandemia no curto, médio e longo prazo. Mas, o fato é que muitas coisas irão mudar daqui para a frente. Muitos modelos de negócios devem deixar de existir para dar lugar a novos. Muitos pais vão rever seus papéis na educação dos filhos. Muitas escolas irão procurar alternativas para preparar os profissionais para o futuro – e não mais para o passado, como a maioria vinha fazendo. De fato, uma nova sociedade irá nascer a partir de 2020. Torço para que seja muito melhor.

Em suma, ainda é cedo para saber os reais impactos da pandemia no curto, médio e longo prazo. Mas, o fato é que muitas coisas irão mudar daqui para a frente. Muitos modelos de negócios devem deixar de existir para dar lugar a novos. Muitos pais vão rever seus papéis na educação dos filhos. Muitas escolas irão procurar alternativas para preparar os profissionais para o futuro – e não mais para o passado, como a maioria vinha fazendo. De fato, uma nova sociedade irá nascer a partir de 2020. Torço para que seja muito melhor.